sexta-feira, 9 de abril de 2010

Cesare Battisti e os 40 anos de 68




Numa dessas quintas feiras. Dia de visita na Policia Federal de Brasília. O lugar não inspira muita confiança, claro. Policiais entram e saem, com as suas mais diversas caras e disfraces. Enquanto nós esperamos pela nossa hora.

15hrs. Passamos com duas sacolas cheias: 4 pacotes de biscoito, 4 pêras, 4 goiabas, 4 maçãs, algumas garrafas de suco, cigarros, 2 livros, 5 folhas de papel soltas, tudo isso até a proxima quinta. Entramos na sala onde vamos encontrar o motivo de estarmos ali. Do outro lado do vidro, do outro lado do interfone, está Cesare Batisti.

Cesare Batisti tem 53 anos e esta preso em Brasília fazem 10 meses. Passou boa parte da sua vida na clandestinidade. E isso por que, como nós agora, acreditou e acredita em um mundo novo.

Na Itália dos anos 70, Cesare integrou os PAC- Proletários Armados para o Comunismo, grupo de vertente autonomista e divergente da organização mais famosa da epoca - As Brigadas Vermelhas.

Diferentemente das Brigadas, os PAC não acreditavam no centralismo operário como o grande motor revolucionário. Vários dos seus membros já tinham participado de outras organizações armadas, mas as tinham deixado por discordarem dos princípios maoístas-leninistas, da linha divisória entre teoria e ação e da hierarquia tradicional dos partidos. Segundo Cesare, "os PAC queriam se diferenciar dos outros grupos rejeitando o nome de "organização". Eram apenas uma sigla, representativa de "novos" princípios. Qualquer desconhecido podia agir em nome dessa sigla, sem limites geográficos e com total autonomia. Éramos uma palavra de ordem, que poderia ser apropriada por qualquer sujeito revolucionário que recusasse a doutrina da tomada do poder, tal como era entendida na época."

Fascinado pelas idéias dos Pac, Cesare passou a integrá-los em 1976. Mas a sua participação não chegou a durar 2 anos completos. Quando as Brigadas Vermelhas assasinam a Aldo Moro, em 9 de maio de 1978, Cesare e outros/as integrantes passam a repensar o uso da violência como resistência e o próprio grupo.

Daí se tira novo slogan dos PAC: "Sim à defesa armada, não aos atentados que acarretem morte humana". Mas, pelas próprias características da organização - descentralização, autonomia dos coletivos - qualquer tipo de controle não se mostra muito efetivo. E é assim que alguns meses depois, um assassinato de um carcereiro em Milão é reivindicado por um grupo que se identifica também como PAC.

Com esse assassinato, vários/as integrantes dos PAC decidem que, nesse momento, não se podia continuar revindicando "meia luta armada", como pretendiam com o slogan. Era necessário deixá-la de vez. É e então que Cesare resolve não só sair do grupo, como também tentar disolvê-los, conversando vezes e vezes com seu ex-companheiro Pietro Mutti.

Anos depois, o mesmo Pietro Mutti que o chamou de traidor por essa tentativa de dissolução dos PAC, é preso, torturado, e se torna um "Arrependido". "Arrependidx" é como aquelxs guerrilheirxs que, depois de presxs pelo governo italiano, e em busca de redução de pena ou liberdade, optaram por colaborar com o governo, delatando ex companheirxs de luta.

Pietro Mutti foi um dos grandes organizadores e idealizadores dos PAC. Depois, vira um dos mais famosxs arrependidxs. Denunciou a tanta gente, que sua pena de prisao perpétua foi anulada e hoje ele esté em liberdade. Contou tantas histórias diferentes, que chegou a ser ameaçado pelo governo de ser devolvido as celas junto com seus ex-companheirxs se não maneirasse nas invenções.

Pois é esse Pietro Mutti que denuncia a Cesare como autor de 4 homicidios. Apenas um deles aconteceu quando Cesare estava na organização. Dois deles aconteceram simultáneamente, só que em lugares que distam 500 km um do outro (assim que, ao final, Cesare foi acusado de executor de um e idealizador de outro). Cesare foi julgado pelos 4 homicídios na Itália, a revelia, e condenado a prisao perpétua.

Quatorze anos atrás, quando estava refugiado na França, a Itália pediu sua extradição. O processo é julgado e a extradição negada. Cesare passa então a viver em Paris.

Em 2006, no entanto, a Itália pede outra vez a extradição de Bastiti à França. Batistti é preso e uma grande campanha, inclusive da midia corporativa, pede para que ele seja solto. Várias milhares de mobilizações são feitas pela sua liberdade.

De uma hora para outra, de acordo com o relato do proprio Cesare em seu livro, a grande mídia começa a mudar sua posição. O antes injusticado italiano, que estava sendo julgado duas vezes sem que o processo apresentasse nenhum elemento novo, passa a ser retratado por todos os grandes jornais como um assassino cruel, um terrorista, um monstro. A extradição é concedida no dia 30 de junho.

Alguns meses depois, um jornal italiano publica o que se sabia sobre a negociação com a França pela extradição de Batisti. Segundo o redator, em troca da extradição, a Itália estava assinando um acordo para a linha Lyon-Turim do TGV (trem bala), prometia uma participação na compra do Airbus e um sim ao novo tratado constitucional europeu.

A vida inteira de um homem tinha sido negociada.

Cesare, com algum apoio, foge pro Brasil. Fica algum tempo em liberdade, no Rio, até que é preso outra vez em março do ano passado. A Itália então pede a extradição ao Brasil.

Só 10 meses depois de sua prisão Cesare passa por seu primeiro interrogatório. Foi aí que nós o vimos pela primeira vez, cobrindo o interrogatorio para o Centro de Midia Independente. Até entao, o processo não tinha andado e Cesare seguia confinado na Policia Federal de Brasília.

A pregunta que Cesare se faz todo o tempo no seu livro, "porque eu" -, ele sabe responder bem na entrevista que fazemos com ele: "Eles nunca me calaram. Uma das imagens que tem de mim é que eu estive todo esse tempo fugindo, me escondendo. Mas eu nunca deixei de atuar políticamente, mesmo que de maneira mínima."

Os seus livros são uma voz rebelde contra o esquecimento ao qual os poderosos da Itália querem relegar à decada de 70, quando não havia uma ditadura oficial instaurada, mas uma série de praticas fascistas, grupos paramilitares e terroristas pagos pelo governo, prisões, torturas de ativistas politicos. "Dos atentados a bomba perpetrados por certos departamentos de Estado, ninguém falava. As ações mortíferas de extrema direita, os golpes de estado organizados pela famosa Loggia P2 - de que fizeram parte o atual chefe do governo e seu ministro do interior - tudo isso tinha sido apagado." Sua voz nao deixa esquecer.

Cesare agora está escrevendo o terceiro livro da trilogía que conta essa parte da sua vida, a de eterno clandestino político. "Minha Fuga Sem Fim" é o primeiro e já foi lançado, o segundo esta detido com a Polícia Federal de Brasilia, dentro do computador de Cesare. O terceiro, ele escreve pouco a pouco, com as 5 folhas que tem direito por semana.

"Este tempo na cadeia tem servido de reflexão. Uma maneira de avaliar, de maneira mais distante, o que aconteceu ha 30 anos atrás."

E justo neste ano, se comemoram 40 anos do maio de 68. O ano que marcou por sua rebeldia, em que explodiram rebeliões na Europa e em especial na França, a geração da qual Cesare fez parte.

"O meu caso não pode ser analisado isoladamente. Temos que aproveitar esse caso para falar de tudo o que se conquistou em 68. As vezes fica a impressão de que tudo o que foi conquistado foi dado pelos governos. Os governos não nos deram nada de presente, tudo o que se conquistou foi pago com a vida e com a morte. Quando se pensa em 68, logo se associam imagens de guerrillas, terrorismo. A guerrilha foi uma pequena parte de tudo o que aconteceu. O movimento de 68 era um movimento de gente que queria viver, e não morrer. De Chumbo eram os anos deles. Os nossos eram os anos de amor".

A 40 anos de 68, aqueles momentos não pertencem nem aos governos, que revindicam as conquistas como benesses, nem àqueles e àquelas que participaram ativamente de tudo, mas que trocaram a atuação pelas "doces memorias de juventude".

1968 pertence a gente como Cesare, que com "um monte de amor que me acompanhava por toda parte, até na mais infame das celas italianas, tinha me ajudado a amar mais e, principalmente, a não baixar a cabeça.". Gente que não desistiu e não desiste, mesmo em momentos de refluxo. Aos e às zapatistas, aos e as piqueterxs, aos e às okupas, às Casas das Pombas, às barricadas de Oaxaca, aos e às catraqueirxs, aos e às sem terra, desempregadxs, a todos e todas que nao abandonaram o sonho e a luta por um mundo novo.


POSTAGEM ORIGINAL EM: http://cesarelivre.org/node/1

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